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A review by katya_m
A Terra Onde o Tempo Parou by Bohumil Hrabal
"Deus não gosta da verdade, gosta dos malucos e das pessoas exaltadas(...), Deus gosta da não-verdade repetida na fé, até gosta mais da mentira apaixonada do que da verdade seca..."
24
Na minha senda pela melancolia não podia deixar de fazer uma paragem nesta obra.
Bohumil Hrabal tem a biografia perfeita para aliciar leitores que, como eu, procuram a poesia na banalidade do dia a dia: contemporâneo de Kundera, embora lhe exceda uns anos, Hrabal é descrito como amante da boa vida - leia-se da bebida (enfim, não seria exatamente a minha definição de prazer, mas adiante...) -, é descrito, dizia eu, como o homem dos mil ofícios, de ferroviário a telegrafista a agente de seguros etc., depois de abandonar a carreira académica em '39, e o curso que só virá a poder completar anos mais tarde. Hrabal vive tempos absolutamente memoráveis, a ocupação alemã da Segunda Guerra - a mesma que lhe encerraria as portas da Universidade de Praga -, a ocupação soviética do pós-Segunda Guerra, o comunismo instituído pela Primavera de Praga...um sem fim de cataclismos que culminaram na sua perseguição e censura. Curiosamente, Hrabal é dos poucos que escolhe não abandonar o país - numa postura que me surpreende e intriga muitíssimo (postura muito semelhante à de Boris Pasternak, ali muito perto).
Romanticamente, Hrabal morrerá após cair de uma varanda do hospital onde estava internado e de onde, aparentemente, alimentava pombos.
Isso ou Hrabal simplesmente se atirou janela fora. Mas para quê manchar o enredo romântico?
Bom.
Muitas vezes penso que talvez o sentido de humor faça parte do manancial de qualidades checas (é-me muito cedo para afirmar), mas Hrabal é sem dúvida um escritor dotado de um humor peculiar: ora grotesco ora cândido, e doseado de forma bastante agradável. Verdade se diga que dei comigo a rir bastantes vezes, embora tudo o que me passou ao lado.
O surrealismo da sua obra, no entanto, não me apela particularmente aos sentidos, talvez porque a transposição entre a tragédia e o humor, que perfazem o seu estilo, resulta sempre grotesca, e o grotesco sai completamente do registo que aprecio. Ainda assim, não foi essa a maior barreira que transpus nesta leitura. A linguagem brejeira e depreciativa foi definitivamente o gatilho que me fez desinteressar das restantes, digamos, 100 páginas... O livro tem apenas 130. O enredamento já não era fácil de seguir, pois Hrabal encadeia múltiplas histórias no discurso do seu narrador, mas estes modos de estivador deram conta da minha boa vontade.
Autobiográfica como não podia deixar de ser, a narrativa acompanha a vida de dois homens simples (pai e tio do narrador a que poderiam facilmente fazer-se corresponder pai e tio do escritor). Mas a promessa das primeiras páginas não é essa, e, se o livro começa como uma aguarela da vida do jovem narrador que sonha vir a tornar-se marinheiro, depressa o escritor nos leva num périplo de metáforas e analogias em que o marinheiro se transforma num ser mítico e não já real como aquele a que o jovem (Hrabal?) aspirava...
Muito em breve a história se resume a um traçado de uma vida excêntrica, e inevitavelmente trágica, de um leviano sem préstimo (embora lá corajoso seja ele) transformado em herói.
Sabem-me sempre a pouco estes retratos que legitimam caracteres baixos, desinteressantes e arrogantes, como se ser homem (ser humano) fosse apenas isto...
Depois existem alguns problemas a nível de teoria de literatura: Hrabal escolhe construir uma narrativa a partir da visão de um personagem (autobiográfico) que tem parte na história - e, logo, narra na primeira pessoa -, mas fazendo dele personagem depressa se esquece que o seu narrador não pode ter poderes omniscientes...e ele tem-nos. Está em todo o lado, a toda a hora e tem profundo conhecimento das motivações e sentimentos de cada um dos intervenientes. Se isto acrescenta ao surrealismo da história e pode (e deve) ser intencional? Pode, mas para mim não resulta.
Posto isto, há uma rebeldia de fundo que atrai em Hrabal - um certo anti-clericalismo, uma certa aversão política e uma permanente busca pela liberdade total que guardo como o verdadeiro tesouro da sua escrita, e que seriam refrescantes se não se perdessem nesta trama tão pouco profunda.
Depois disto tudo, talvez Uma Solidão Demasiado Ruidosa ainda mereça qualquer coisa da minha atenção... Veremos. Só eu terei a ganhar ou a perder.
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Na minha senda pela melancolia não podia deixar de fazer uma paragem nesta obra.
Bohumil Hrabal tem a biografia perfeita para aliciar leitores que, como eu, procuram a poesia na banalidade do dia a dia: contemporâneo de Kundera, embora lhe exceda uns anos, Hrabal é descrito como amante da boa vida - leia-se da bebida (enfim, não seria exatamente a minha definição de prazer, mas adiante...) -, é descrito, dizia eu, como o homem dos mil ofícios, de ferroviário a telegrafista a agente de seguros etc., depois de abandonar a carreira académica em '39, e o curso que só virá a poder completar anos mais tarde. Hrabal vive tempos absolutamente memoráveis, a ocupação alemã da Segunda Guerra - a mesma que lhe encerraria as portas da Universidade de Praga -, a ocupação soviética do pós-Segunda Guerra, o comunismo instituído pela Primavera de Praga...um sem fim de cataclismos que culminaram na sua perseguição e censura. Curiosamente, Hrabal é dos poucos que escolhe não abandonar o país - numa postura que me surpreende e intriga muitíssimo (postura muito semelhante à de Boris Pasternak, ali muito perto).
Romanticamente, Hrabal morrerá após cair de uma varanda do hospital onde estava internado e de onde, aparentemente, alimentava pombos.
Isso ou Hrabal simplesmente se atirou janela fora. Mas para quê manchar o enredo romântico?
Bom.
Muitas vezes penso que talvez o sentido de humor faça parte do manancial de qualidades checas (é-me muito cedo para afirmar), mas Hrabal é sem dúvida um escritor dotado de um humor peculiar: ora grotesco ora cândido, e doseado de forma bastante agradável. Verdade se diga que dei comigo a rir bastantes vezes, embora tudo o que me passou ao lado.
O surrealismo da sua obra, no entanto, não me apela particularmente aos sentidos, talvez porque a transposição entre a tragédia e o humor, que perfazem o seu estilo, resulta sempre grotesca, e o grotesco sai completamente do registo que aprecio. Ainda assim, não foi essa a maior barreira que transpus nesta leitura. A linguagem brejeira e depreciativa foi definitivamente o gatilho que me fez desinteressar das restantes, digamos, 100 páginas... O livro tem apenas 130. O enredamento já não era fácil de seguir, pois Hrabal encadeia múltiplas histórias no discurso do seu narrador, mas estes modos de estivador deram conta da minha boa vontade.
Autobiográfica como não podia deixar de ser, a narrativa acompanha a vida de dois homens simples (pai e tio do narrador a que poderiam facilmente fazer-se corresponder pai e tio do escritor). Mas a promessa das primeiras páginas não é essa, e, se o livro começa como uma aguarela da vida do jovem narrador que sonha vir a tornar-se marinheiro, depressa o escritor nos leva num périplo de metáforas e analogias em que o marinheiro se transforma num ser mítico e não já real como aquele a que o jovem (Hrabal?) aspirava...
Muito em breve a história se resume a um traçado de uma vida excêntrica, e inevitavelmente trágica, de um leviano sem préstimo (embora lá corajoso seja ele) transformado em herói.
Sabem-me sempre a pouco estes retratos que legitimam caracteres baixos, desinteressantes e arrogantes, como se ser homem (ser humano) fosse apenas isto...
Depois existem alguns problemas a nível de teoria de literatura: Hrabal escolhe construir uma narrativa a partir da visão de um personagem (autobiográfico) que tem parte na história - e, logo, narra na primeira pessoa -, mas fazendo dele personagem depressa se esquece que o seu narrador não pode ter poderes omniscientes...e ele tem-nos. Está em todo o lado, a toda a hora e tem profundo conhecimento das motivações e sentimentos de cada um dos intervenientes. Se isto acrescenta ao surrealismo da história e pode (e deve) ser intencional? Pode, mas para mim não resulta.
Posto isto, há uma rebeldia de fundo que atrai em Hrabal - um certo anti-clericalismo, uma certa aversão política e uma permanente busca pela liberdade total que guardo como o verdadeiro tesouro da sua escrita, e que seriam refrescantes se não se perdessem nesta trama tão pouco profunda.
Depois disto tudo, talvez Uma Solidão Demasiado Ruidosa ainda mereça qualquer coisa da minha atenção... Veremos. Só eu terei a ganhar ou a perder.