Take a photo of a barcode or cover
A review by rolandosmedeiros
Dangerous Liaisons by Pierre Choderlos de Laclos
5.0
Por enquanto, para ser breve, basta parafrasear o posfácio do nosso Carlos Drummond ao traduzir o Laclos: "E como escrevia bem esse danado…".
A sequência narrativa final, a sucessão de cartas, bilhetes, cenas e imagens, é acelerada e impactante, ao ponto de fazer o leitor devorar todas as correspondências com avidez, buscando aquele nome, aquele remetente específico, aquela voz tão próxima e agora tão diversa.
Ao fechar o livro, a única reclamação que tenho é que tão imerso fiquei na história que queria mais cartas do Visconde e da Marquesa, estes foram tão estilisticamente superiores, moralmente amórficos, narrativamente instigantes, que em certas partes tornavam todas as outras cartas (e personagens) menos palatáveis. Mas, mesmo isso, na sequência final, é corrigido pelo Laclos, onde a situação em que se encontram todos nossos atores, faz com que todas as cartas, de todas personagens, tornem-se igualmente importantes, e um pequeno bilhete, ou o devolvimento de uma carta com um mero risco, tem o poder de corte de uma lâmina afiada.
Uma em específico me pegou bastante, para não entrar muito em detalhes aqui, é uma carta fruto de um delírio, destinada a ninguém em específico, mas, ao mesmo tempo, a todos; onde uma confissão reveladora é suprimida não por medo da repreensão, mas por medo de uma possibilidade de perdão.
Literatura finíssima, da mais alta qualidade. Provavelmente o melhor que lerei (ps. que li) no ano.
Fim da Parte Terceira:
Esse livro realçou e sublinhou algo que em mim já ia se consolidando: quando se trata da arte literária, o tema é uma unha, uma cutícula, uma epiderme. Não há temas superiores, não há necessidade de temas grandiosos ou grandiloquentes, basta um bom estilo e uma boa forma.
Se eu, delegando a leitura, buscasse por uma sinopse, resumo ou recomendação desse livro aqui, dado sua temática, que me interessa minimamente, eu passaria reto pela prateleira sem nem olhar para o lado; se acrescentassem que além do jogo de sedução, tratasse também de corrupção, ambiguidade, hipocrisia moral e social, eu viraria a cabeça para vê-lo, mas, ainda sim, manteria a distância; e perderia um livro ímpar. Ler só aquilo que te "interessa" é um acerto, no começo, e um erro no fim.
É lendo-o que ele se sobressai; é no estilo meticulosamente cravejado do Laclos, quando cada linha escrita se molda e se adequa a cada voz, a cada carta a cada sentimento; cheio de movimentos de manipulação e olhares frios e irônicos. Um criado, por exemplo, que além de uma breve citação na primeira ou segunda parte, passa como que totalmente trivial e secundário, mas quando o Laclos mostra uma carta sua, o homem adquire uma voz singular e uma personalidade vívida imediatamente. Sem exposição ou descrição, apenas numa resposta formal sobre trabalho!; ele revela astúcia, revela subordinação mas não submissão, revela — ao recusar a ordem de se infiltrar na criadagem de uma Presidenta — esnobismo para com outros criados da noblesse de robe (nobreza adquirida) — serviçais de hierarquia inferior e uniforme específico — que ele recusa em ultimato a vestir. É um indicativo claro, pousou na mão do Laclos para que tenha o mínimo de desenvolvimento, a personagem adquire potência e camadas.
E nisso me refiro a só uma (única) carta, de uma personagem digamos que menos que secundário. Não há nem como entrar, com brevidade, no Visconde e na Marquesa, que nesse ponto, você já começa a pegar não só a dicção, mas o caráter enganoso da linguagem libertina que ambos utilizam, irônica, dissimuladora; ou, se percebe quando trocam de voz intencionalmente, a fim de enganar e manipular; ou quando se tornam grandiosos, heroicos, mitológicos, e religiosamente eloquentes para narrar suas conquistas; contrapondo, no caso do Visconde, um ato vil com uma linguagem fina; são estratégicos, maquiavélicos, racionalistas, engenhosos e meticulosos em seus planos e inclinações.
Queria entrar em detalhe de uma cena específica dessa parte três: há um abuso, que feita uma leitura enviesada, não levando em consideração as nuances do livro, pode ser bastante problemática. Mas, já divaguei demais e deixo aqui marcado para expandir essa questão quando for escrever mais sobre a obra.
Fim da parte dois; duzentas páginas adentro.
É como se O Príncipe de Maquiável se encontrasse com A Arte da Guerra do Sun Tzu, só que pautando, em vez da guerra, as relações amorosas e desejosas da burguesia francesa. A história de corrupção, dissimulação e sedução narrada em epístolas, a primeira vista, não me atraiu nem um pouco. No entanto, a condução do Laclos, sua maneira de encadear e construir cenas, remontá-las, recriá-las, tudo a partir de diminutas cartas em primeira pessoa (com intromissões totalmente verossímeis e dentro da forma) e a sua escrita carregada mas elegante, cheia de minúcias, tornam a leitura muito prazerosa.
Sinceramente, não fosse pelo estilo do Laclos, eu não passaria das primeiras vinte páginas, ou das primeiras cartas excessivamente românticas e blasés dos adolescentes ingênuos que se tornam joguetes nas mãos das personagens principais. No entanto, a escrita é boa, ótima, e me deixei conduzir pelo autor, e seja lá o que venha adiante e para onde ele levará o enredo, sei que não será ruim nem de longe. Ele sabe o que está fazendo, isso fica claro desde o "prefácio" do "editor".
As duas cenas mais memoráveis dessa primeira parte são, a primeira: uma carta afetada e cheia de duplo-sentido, onde o Laclos monta uma cena aos pedaços para que o leitor reconstrua, a partir de correspondências anteriores, todo um cenário e situação específica em que essa carta foi escrita: uma personagem que declara seu amor a uma mulher enquanto utiliza as nádegas de outra como mesa para grafia. Lembre-se: não há exposição pura, e toda essa cena é criada na sua cabeça por um linguagem cifrada do tipo que recompensa, a todo tempo, a leitura atenta.
A segunda é quando uma personagem recebe uma carta, e temos toda a descrição do espanto (mas não sabemos o conteúdo), vergonha, raiva, e outras emoções sentidas ao lê-la. E também a descrição do observador que também é o correspondente; e em outra cena, logo em seguida, temos a mesma carta, isolada, e vemos seu conteúdo, e remontamos a imagem mental, reconstruímos perfeitamente a cena por meio do seu conteúdo, numa união de forma e estilo potencialmente fortíssima; as cartas do Laclos são objetos muitíssimo reais.
A sequência narrativa final, a sucessão de cartas, bilhetes, cenas e imagens, é acelerada e impactante, ao ponto de fazer o leitor devorar todas as correspondências com avidez, buscando aquele nome, aquele remetente específico, aquela voz tão próxima e agora tão diversa.
Ao fechar o livro, a única reclamação que tenho é que tão imerso fiquei na história que queria mais cartas do Visconde e da Marquesa, estes foram tão estilisticamente superiores, moralmente amórficos, narrativamente instigantes, que em certas partes tornavam todas as outras cartas (e personagens) menos palatáveis. Mas, mesmo isso, na sequência final, é corrigido pelo Laclos, onde a situação em que se encontram todos nossos atores, faz com que todas as cartas, de todas personagens, tornem-se igualmente importantes, e um pequeno bilhete, ou o devolvimento de uma carta com um mero risco, tem o poder de corte de uma lâmina afiada.
Uma em específico me pegou bastante, para não entrar muito em detalhes aqui, é uma carta fruto de um delírio, destinada a ninguém em específico, mas, ao mesmo tempo, a todos; onde uma confissão reveladora é suprimida não por medo da repreensão, mas por medo de uma possibilidade de perdão.
Literatura finíssima, da mais alta qualidade. Provavelmente o melhor que lerei (ps. que li) no ano.
Fim da Parte Terceira:
Esse livro realçou e sublinhou algo que em mim já ia se consolidando: quando se trata da arte literária, o tema é uma unha, uma cutícula, uma epiderme. Não há temas superiores, não há necessidade de temas grandiosos ou grandiloquentes, basta um bom estilo e uma boa forma.
Se eu, delegando a leitura, buscasse por uma sinopse, resumo ou recomendação desse livro aqui, dado sua temática, que me interessa minimamente, eu passaria reto pela prateleira sem nem olhar para o lado; se acrescentassem que além do jogo de sedução, tratasse também de corrupção, ambiguidade, hipocrisia moral e social, eu viraria a cabeça para vê-lo, mas, ainda sim, manteria a distância; e perderia um livro ímpar. Ler só aquilo que te "interessa" é um acerto, no começo, e um erro no fim.
É lendo-o que ele se sobressai; é no estilo meticulosamente cravejado do Laclos, quando cada linha escrita se molda e se adequa a cada voz, a cada carta a cada sentimento; cheio de movimentos de manipulação e olhares frios e irônicos. Um criado, por exemplo, que além de uma breve citação na primeira ou segunda parte, passa como que totalmente trivial e secundário, mas quando o Laclos mostra uma carta sua, o homem adquire uma voz singular e uma personalidade vívida imediatamente. Sem exposição ou descrição, apenas numa resposta formal sobre trabalho!; ele revela astúcia, revela subordinação mas não submissão, revela — ao recusar a ordem de se infiltrar na criadagem de uma Presidenta — esnobismo para com outros criados da noblesse de robe (nobreza adquirida) — serviçais de hierarquia inferior e uniforme específico — que ele recusa em ultimato a vestir. É um indicativo claro, pousou na mão do Laclos para que tenha o mínimo de desenvolvimento, a personagem adquire potência e camadas.
E nisso me refiro a só uma (única) carta, de uma personagem digamos que menos que secundário. Não há nem como entrar, com brevidade, no Visconde e na Marquesa, que nesse ponto, você já começa a pegar não só a dicção, mas o caráter enganoso da linguagem libertina que ambos utilizam, irônica, dissimuladora; ou, se percebe quando trocam de voz intencionalmente, a fim de enganar e manipular; ou quando se tornam grandiosos, heroicos, mitológicos, e religiosamente eloquentes para narrar suas conquistas; contrapondo, no caso do Visconde, um ato vil com uma linguagem fina; são estratégicos, maquiavélicos, racionalistas, engenhosos e meticulosos em seus planos e inclinações.
Queria entrar em detalhe de uma cena específica dessa parte três: há um abuso, que feita uma leitura enviesada, não levando em consideração as nuances do livro, pode ser bastante problemática. Mas, já divaguei demais e deixo aqui marcado para expandir essa questão quando for escrever mais sobre a obra.
Fim da parte dois; duzentas páginas adentro.
É como se O Príncipe de Maquiável se encontrasse com A Arte da Guerra do Sun Tzu, só que pautando, em vez da guerra, as relações amorosas e desejosas da burguesia francesa. A história de corrupção, dissimulação e sedução narrada em epístolas, a primeira vista, não me atraiu nem um pouco. No entanto, a condução do Laclos, sua maneira de encadear e construir cenas, remontá-las, recriá-las, tudo a partir de diminutas cartas em primeira pessoa (com intromissões totalmente verossímeis e dentro da forma) e a sua escrita carregada mas elegante, cheia de minúcias, tornam a leitura muito prazerosa.
Sinceramente, não fosse pelo estilo do Laclos, eu não passaria das primeiras vinte páginas, ou das primeiras cartas excessivamente românticas e blasés dos adolescentes ingênuos que se tornam joguetes nas mãos das personagens principais. No entanto, a escrita é boa, ótima, e me deixei conduzir pelo autor, e seja lá o que venha adiante e para onde ele levará o enredo, sei que não será ruim nem de longe. Ele sabe o que está fazendo, isso fica claro desde o "prefácio" do "editor".
As duas cenas mais memoráveis dessa primeira parte são, a primeira: uma carta afetada e cheia de duplo-sentido, onde o Laclos monta uma cena aos pedaços para que o leitor reconstrua, a partir de correspondências anteriores, todo um cenário e situação específica em que essa carta foi escrita: uma personagem que declara seu amor a uma mulher enquanto utiliza as nádegas de outra como mesa para grafia. Lembre-se: não há exposição pura, e toda essa cena é criada na sua cabeça por um linguagem cifrada do tipo que recompensa, a todo tempo, a leitura atenta.
A segunda é quando uma personagem recebe uma carta, e temos toda a descrição do espanto (mas não sabemos o conteúdo), vergonha, raiva, e outras emoções sentidas ao lê-la. E também a descrição do observador que também é o correspondente; e em outra cena, logo em seguida, temos a mesma carta, isolada, e vemos seu conteúdo, e remontamos a imagem mental, reconstruímos perfeitamente a cena por meio do seu conteúdo, numa união de forma e estilo potencialmente fortíssima; as cartas do Laclos são objetos muitíssimo reais.